Havia uma Mulher que não Sabia Ler
Havia uma mulher que não sabia ler. E todos os dias apanhava o metro para ir trabalhar com uma multidão que não estava sequer familiarizada com a palavra “soletrar”. Canetas e jornais pertenciam aos livros de História. Perdão, aos guias auditivos de História. Era preciso ir procurar lá bem longe às aldeias recatadas quem ainda se recordasse do cheiro de um livro acabado de comprar, da sensação de folhear as suas páginas imaculadas pela primeira vez, da emoção de ler a última frase com um aperto no peito ou um suspiro de alívio.Um dia, enquanto a mesma voz monocórdica de sempre lhe debitava aos ouvidos qual o melhor método para remover nódoas da carpete, saiu na estação errada sem se dar conta e foi dar a uma viela na qual dois indivíduos esclerosados se aqueciam em redor de uma fogueira.
O primeiro instinto da mulher foi dar meia volta e regressar à estação. Olhou em redor, em busca de uma câmara de segurança que a pudesse já ter em mira, com o coração aos saltos. O olhar tropeçou numa pilha de livros meio escondida por uma manta entre outros objectos pessoais.
Um dos homens, denotando a perplexidade da desconhecida, aproximou-se com cautela, esfregando as mãos sujas uma na outra. A mulher, que trabalhava como farmacêutica na empresa que desenvolvera a “pílula da felicidade” e nunca conhecera um sem abrigo, deu dois passos para trás. O velho seguiu-lhe o olhar até à pilha de livros e apoderou-se do que estava mais perto, cobrindo os restantes com prudência.
A mulher viu-o aproximar-se e sorrir. Faltavam-lhe dentes mas ela sorriu de volta, sem razão aparente. Ele estendeu-lhe o livro, que ela prontamente escondeu no fundo da mala, antes de fugir apressada. O título era “Fahrenheit 451”. Mas ela não sabia ler.